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“Crise argentina é alerta para Brasil”, diz gaúcho que viu lojas fechadas e preço mudar em minutos

Argentina passa por uma grave crise econômica, com inflação acumulada em 60% em 12 meses, dólar “blue” (paralelo) em 255 pesos, ante os 132 “oficiais”, baixo poder de compra da população e índices de pobreza crescendo. Como o país é importante parceiro comercial do Rio Grande do Sul e do Brasil, a situação tem impacto local, com restrições já adotadas a importações. A troca no Ministério da Economia, com a chegada de Silvina Batakis, do grupo da vice-presidente Cristina Kirchner, cria expectativa de medida adicionais. Roberto Uebel, professor de Relações Internacionais da ESPM em Porto Alegre, acompanhou esses dias de inquietação em Buenos Aires e fez um relato analítico do que viu. 

O que mais chamou a sua atenção sobre o impacto da crise no dia a dia dos argentinos?
A remarcação de preços nos produtos. Lembra muito aquela situação no Brasil antes do Plano Real, no final da década de 1980 e início de 1990. Já fui a lugares aqui que, quando chegamos, havia um preço. Quando estávamos saindo, já estavam remarcando com outro valor. Conversando com argentinos, a principal reclamação é mesmo a inflação, que causa o aumento dos preços. É o assunto que predomina nas ruas e nos telejornais, com aumentos acumulados nos últimos meses chegando a 100% em determinados produtos. E tem a diferença entre o dólar oficial e o dólar negociado nas ruas, que é muito grande, quase o dobro. Para uma economia extremamente dolarizada como a argentina, isso é muito complicado.

Há similaridades entre a crise econômica na Argentina e a crise do Brasil?
A atual crise econômica na Argentina acende um sinal de alerta para o futuro do Brasil. Há semelhanças entre as duas crises, como a inflação e o câmbio muito oscilante, embora a cotação do dólar em real não varie com a mesma velocidade e violência do peso argentino. Outra similaridade é a perda do poder de compra da população, ainda que na Argentina essa perda tenha sido muito maior. A crise atual na Argentina foi herdada da má gestão econômica do governo Macri, que deixou alto endividamento. É muito semelhante ao que se vê no Brasil, com o presidente Bolsonaro com novas agendas e propostas de vouchers e auxílios. Essa conta poderá chegar no próximo governo. Vejo insatisfação muito grande dos argentinos com o governo de Alberto Fernández. Ele pode ter agravado a crise na  tentativa de conter o aumento do dólar, mas o estágio inicial ocorreu no governo Macri. Então, podemos ver isso como um sinal de alerta para o Brasil no futuro próximo. Contudo, não acredito em uma crise econômica dessa proporção no Brasil, que tem economia e política cambial muito mais sólidas do que a Argentina.

Esta é a pior crise argentina desde 2001?
É uma das piores, se não for a pior, crise econômica na Argentina desde 2001. A grande diferença é que hoje não se fala em calote, como aconteceu em 2001, mas sim em uma tentativa de renegociar a dívida externa e os compromissos com o FMI (Fundo Monetário Internacional). Não parece estar no horizonte a ideia de calote, até porque traria uma situação ainda pior para a população argentina. Mas o fato é que há uma séria crise política entre o presidente e a vice, Cristina Kirchner, que já foi a presidente, e seu grupo político. A nova ministra da Economia, Silvina Batakis, foi indicada por Cristina, e hoje se questiona no país a própria autonomia de Fernández para conseguir governar. Então existe também uma grave crise política, que ainda vê a ascensão da extrema-direita, com um forte discurso anti-sistema, muito semelhante também ao vimos nos últimos anos no Brasil.

Como a recente troca de ministros da economia abalou o governo?
A renúncia do ministro Guzmán e a chegada da ministra Batakis é uma vitória, ainda que parcial, da influência da vice-presidente no atual governo. Isso está muito claro no país. Há uma disputa no Partido Justicialista entre essa ala peronista mais tradicional, representada por Fernández, contra a ala kirchnerista. Cristina demonstra cada vez mais força política, e uma capacidade crescente de influenciar o governo, que outros vice-presidentes não tinham. Guardadas as proporções, há comparações com o que ocorria no Brasil durante um período na relação entre Dilma Rousseff e Michel Temer antes do impeachment. Há especulações até de que a vice esteja arquitetando uma destituição de Fernández do cargo, o que, se de fato acontecer, agravaria ainda mais a crise no país.

Quais são os reflexos desta crise argentina para Rio Grande do Sul e Brasil?
Qualquer crise na Argentina impacta o Brasil, incluindo o Rio Grande do Sul. Esse trânsito de mercadorias, e o próprio pagamento das importações acaba sendo impactado pela crise, como observamos. Quanto mais desvalorizada a moeda argentina, pior para o Mercosul de modo geral, pois isso acaba impactando na formação do preço para o importador, seja no Mercosul ou outros mercados. Então, a crise afeta a cadeia produtiva do bloco. No âmbito político, hoje há também um claro afastamento entre Brasil e Argentina, e a chance de qualquer negociação de ajuda ou auxílio financeiro entre os países para facilitar a situação é praticamente inexistente.

Como o atual cenário impacta a corrida presidencial que começa a se desenhar?
Ainda é difícil saber qual será o teto, e como o país vai superar a crise. Com relação às eleições de 2023, é preciso observar o quanto a crise econômica vai respingar na política. Na fotografia atual, o governo Fernández está extremamente desgastado, e há fortes críticas à atuação de Cristina dentro do governo. Já se fala em retorno de Macri, mas o discurso radical, tanto de esquerda quanto da extrema-direita, tem obtido mais atenção na Argentina. O país está extremamente polarizado, endividado, com baixo poder de compra, e com inflação cada vez mais alta. É um cenário total de crise nas ruas, com muitas lojas fechadas, e um semblante de grande preocupação no rosto da população.

ZH

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