Governo tenta acelerar reforma tributária, tida como vital, mas travada há 20 anos
Promessa central da campanha do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e temática consensual no setor produtivo, a reforma tributária domina as atenções e discursos da nova equipe econômica. Os integrantes correm contra o tempo para organizar o que pode ser aproveitado dos projetos em discussão no Congresso e fechar o texto, abrindo caminho para aprovação ainda no primeiro ano de mandato.
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, apresentou, no fim de janeiro, força-tarefa para a elaboração da proposta com representantes de todas as áreas da pasta. Em declarações recentes, Haddad chegou a projetar a aprovação da matéria até abril, mas esse cenário mais otimista parece distante.
O intervalo de tempo é considerado exíguo para assunto de tamanha complexidade, haja vista que, desde 2004, pelo menos seis propostas de emenda à Constituição (PECs) e um projeto de lei estiveram na pauta do Congresso, sem avançar o suficiente.
Até o momento, o governo federal não detalhou os principais pontos da pauta, largando apenas fragmentos sobre o que deve nortear o texto final. Em um dos acenos mais recentes, no último dia 2, a ministra do Planejamento e Orçamento, Simone Tebet, estimou a aprovação do tema no Congresso em, no mínimo, seis meses. A declaração da ministra ocorreu após reunião com o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL).
Na mesma data, o líder do governo na Câmara, José Guimarães (PT-CE), afirmou que a proposta deve ser encaminhada ao Parlamento até abril e que há espaço para aprovar o texto até o final deste ano. Em mensagem ao Congresso, Lula manteve o mesmo tom, destacando avanços no tema nos próximos meses.
Dias antes, Haddad adiantou que a reforma vai replicar as melhores experiências internacionais e evitará mudar as regras do Simples, tendo foco no imposto sobre consumo. A definição do comando do Congresso, na semana passada, abre caminho para celeridade no processo. Recém reeleitos, Lira e o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), fizeram gestos de apoio à tramitação da proposta nesses primeiros meses.
No intervalo de quase duas décadas, as PECs 45 e 110, que resguardam algumas semelhanças, ganham fôlego extra e concentram a maior parte das expectativas hoje. Entre as razões, está a nomeação de Bernard Appy para a Secretaria Especial da Reforma Tributária. O economista, que comandou a Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda e a Secretaria Extraordinária de Reformas Econômico-fiscais no primeiro governo Lula, cofundou o Centro de Cidadania Fiscal (CCiF), entidade que presidia quando assinou a autoria da PEC 45 — um dos nortes da temática a partir de agora. Appy também foi diretor de Estratégia e Planejamento da BM&F Bovespa, hoje B3, de onde vem relacionamento mais próximo com o mercado financeiro.
No terceiro trimestre de 2022, as despesas gerais do governo federal representavam 44,9% do Produto Interno Bruto (PIB), segundo dado mais recente disponibilizado pelo Tesouro Nacional. Mais do que a redução da elevada carga tributária nacional, a meta de ambas as PECs sobre a mesa no momento é perseguir um modelo capaz de simplificar processos e obrigações acessórias da contabilidade fiscal. Com isso, espera-se por melhorias no ambiente econômico para destravar investimentos.
Movimentações recentes, a exemplo de reunião entre Appy, autor da PEC 45, e senadores que participaram da elaboração da PEC 110, indicam que a tentativa será produzir texto único com referência às duas propostas que tramitam em separado desde 2019 – a 45 na Câmara e a 110 no Senado.
Uma frase repetida à exaustão por anos pelo empresário gaúcho Jorge Gerdau Johannpeter resume a missão. Segundo ele, a área tributária da siderúrgica nos EUA poderia ser tocada por três profissionais e, no Brasil, não com menos de 300. Exageros ou verdades incômodas de lado, a base sobre a qual nascem as propostas em discussão é a unificação de tributos.
Pressões sobre isenções e interesses empresariais
De acordo com o orçamento federal de 2023, deixarão de entrar no caixa no decorrer deste ano R$ 456,1 bilhões referentes às isenções e renúncias fiscais, o que corresponde a 4,29% do PIB.
Por quatro anos, o então ministro da Economia, Paulo Guedes, propagou que a revisão em cerca de 20% desse universo faria brotar o equivalente a R$ 50 bilhões nos cofres federais e haveria, segundo ele, margem para mais.
E, exatamente, nesse ponto começam os debates. Doutor em Economia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professor da Fundação Getulio Vargas (FGV), Mauro Rochlin lembra que o pacote de medidas, apresentado pelo Ministério da Fazenda no fim de janeiro, já aborda de maneira transversal as desonerações.
A questão, avança ele, é que isso mexe no bolso de setores específicos e pujantes da economia nacional, que contam com ampla representação no Congresso Nacional, o que prenuncia mais zonas de resistência.
Da mesma forma, a prioridade dada para o recolhimento tributário nos Estados e municípios de destino, ao contrário do que acontece hoje, quando a arrecadação fica na origem, tem potencial para elevar receitas nos entes da federação menos desenvolvidos, o que desagradaria aqueles economicamente mais ativos.
O que pesa é a oposição corporativa. Estados e municípios já se opuseram, pois perderiam o fluxo direto de arrecadação para a União que, depois, repassaria aos entes. Há forte resistência sobre o fato. Ainda existem os interesses empresariais que podem achar que vão pagar mais e que deveriam pagar menos.
DIOGO CHAMUN
Diretor legislativo da Fenacon
Como consequência, o diretor legislativo da Federação Nacional das Empresas de Serviços Contábeis e das Empresas de Assessoramento, Perícias, Informações e Pesquisas (Fenacon), Diogo Chamun, antevê outro campo de conflito nas bases regionais de deputados e senadores, que sairiam em defesa de interesses locais.
Nota técnica das consultorias de orçamento do Senado e da Câmara dos Deputados, por exemplo, dá números à concentração de renúncias e benefícios no Sudeste e no Sul: mais de 60%. A constatação, segundo o texto, contraria a determinação constitucional que aponta para a redução de desigualdades regionais.
— O que pesa é a oposição corporativa. Estados e municípios já se opuseram, pois perderiam o fluxo direto de arrecadação para a União que, depois, repassaria aos entes. Há forte resistência sobre o fato. Ainda existem os interesses empresariais que podem achar que vão pagar mais e que deveriam pagar menos – arremata Chamun.
De olho no detalhamento das leis
PEC é o instrumento legislativo que altera pontos da Constituição e cria regras gerais. As definições específicas chegam na sequência com as leis complementares. Por isso, contemplar necessidades e trâmites em ambiente parlamentar heterogêneo será o desafio do governo, avalia Tatiane Correa, gerente do Núcleo Jurídico e Tributário da Federação do Comércio de Bens e de Serviços do Estado (Fecomércio-RS).
Ela aponta, por exemplo, que o setor de serviços – responsável por cerca de 70% do PIB nacional — recolhe, atualmente, ISS, PIS e Cofins, cujo teto não ultrapassa 14,24% sobre os rendimentos anuais. O texto da PEC 45 especula alíquota de 25%, o que aumentaria em mais de 10 pontos percentuais a carga sobre área vital para o desenvolvimento do país.
— Após a aprovação, se houver, é preciso ficar atento à redação dos detalhamentos, alíquotas, como funcionaria a distribuição para Estados e municípios. Isso ainda é desconhecido. É difícil fazer reforma desse tamanho sem que alguém saia perdendo. A federação defende a maior isonomia possível, ou seja, que não haja aumento de carga, mas, sim a simplificação — argumenta.
Nesse aspecto, Tatiane resume a complexidade envolvida: de 111 países, o Brasil é o segundo que mais tributa empresas, conforme ranking da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) em 2022. Por aqui, gasta-se, em média, até 1.501 horas por ano para cumprir obrigações tributárias — o maior tempo entre os países avaliados.
Na atual divisão do bolo tributário, diferentemente de nações mais desenvolvidas, a maior fatia fica com o consumo (48,44%), seguida por renda (19,22%) e propriedade (4,58%). Tatiane diz que é a predominância dos denominados tributos indiretos (consumo) a causa da regressividade e da injustiça fiscal ocasionada pelo atual sistema tributário nacional.
Gerente-executivo de Economia da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Mário Sérgio Telles afirma que a reforma precisa ser ampla nessa primeira parte, incluindo os principais tributos do consumo e os substituindo por um IVA. A necessidade de caráter distributivo, com tributação mais equilibrada entre bens e serviços, e o fim da cumulatividade são pontos importantes, acrescenta.
O gerente diz que uma reforma bem estruturada tem potencial para aumentar o PIB do país, auxiliando no crescimento dos setores e na reindustrialização.
Cobrança de ajuste dos gastos
O presidente do Sindicato das Empresas de Serviços Contábeis (Sescon-RS), Flávio Ribeiro, avalia que ambas as PECs em debate se restringem aos impostos diretos. Para o dirigente, antes seria necessário readequar os gastos do governo. Isso porque esse é o embrião da necessidade de custeio das obrigações da União e, por consequência, da fome arrecadatória que tende a afetar as propostas colocadas em discussão ao longo dos anos.
Em números: as receitas previstas no orçamento de 2023 somam R$ 5,345 trilhões, com R$ 2,010 trilhões destinados aos juros e encargos da dívida pública. Dos R$ 3,191 trilhões restantes, 94%, ou seja, quase a totalidade da disponibilidade, está carimbado para pagar despesas obrigatórias. É esse o contingente que poderia ser reajustado em eventual reforma administrativa, salienta Ribeiro.
Nesse aspecto, Diogo Chamun, da Fenacom, chama a atenção para a necessidade de incluir mais temas no âmbito da reforma tributária. O primeiro é outro compromisso de campanha de Lula e também frequenta as falas recentes do presidente. Trata-se da defasagem da tabela do Imposto de Renda (IR) e a iniciativa de isentar da cobrança os rendimentos até R$ 5 mil:
— Atualmente, a tabela só pode ser atualizada, inclusive para repor a inflação, um direito de todo cidadão, por meio de lei.
É inadmissível. Essa sistemática de aumentar arrecadação sem elevar as alíquotas é muito confortável para o governo, já que não enfrenta a sociedade e nem o Legislativo, pois basta não reajustar ou reajustar abaixo da inflação para a arrecadação aumentar.
*Colaborou Anderson Aires
As principais propostas em tramitação no Congresso
PEC 45
- Unifica cinco tributos (IPI, PIS, Cofins, ICMS e ISS) para criar o Imposto sobre Operações com Bens e Serviços (IBS).
- O novo imposto seria uniforme, com alíquota única referencial, porém com a manutenção da autonomia de Estados e municípios para fixar alíquotas próprias.
- Seria priorizado o recolhimento para os Estados e municípios de destino, ao contrário de hoje quando a arrecadação fica na origem. Isso beneficiaria as unidades da federação menos desenvolvidos, aumentaria a arrecadação em algumas cidades e reduziria em outras.
- A ideia é manter a carga tributária, sem elevações ou reduções dos níveis atuais, mas com foco na simplificação dos procedimentos.
- É semelhante ao modelo de IVA (Imposto sobre Valor Adicionado) adotado na maioria dos países europeus.
- Veda benefícios fiscais, o que anularia a guerra fiscal, mas, ao equiparar todos os segmentos, oneraria, por exemplo, produtos essenciais, como os da cesta básica.
- Há previsão de mecanismo de devolução do imposto às famílias mais pobres, por meio de programas sociais.
- Institui o Imposto Seletivo, ou seja, que desincentiva o consumo para alguns bens e serviços, caso de cigarros e bebidas.
PEC 110
- Unifica nove tributos (ICMS, IPI, IOF, ISS, PIS, Cofins, CSLL, Cide combustíveis e salário-educação) para criar o Imposto sobre Operações com Bens e Serviços (IBS).
- Cria alíquota padrão do IBS e permite a instituição de outras diferenciadas por produto/setor econômico. Essas alíquotas, entretanto, deverão ser uniformes em todo o território nacional.
- Desloca parte da tributação sobre o consumo para a renda, para equilibrar a distribuição (em média, 37% sobre a renda e 25% sobre o consumo), conforme modelo de países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
- IPVA e ITCD teriam a arrecadação transferida aos municípios.
- Ao contrário da PEC 45, permite a concessão de benefícios fiscais para vários produtos e serviços. Entre eles: alimentos, medicamentos, transporte público, saneamento básico, Educação Infantil, Ensino Fundamental, Médio, Superior e profissional.
- Permite a instituição de adicional de IBS cuja arrecadação será destinada ao financiamento da Previdência Social.
- Também prevê Imposto Seletivo, porém, mais amplo do que na PEC 45, incidindo sobre vários produtos. Entre eles: petróleo e derivados, combustíveis e lubrificantes, cigarros, energia elétrica, telecomunicações, bebidas, veículos.
Também em debate
Tabela do IR
Os trabalhadores (seja empregado, autônomo ou empresário) têm parcela dos rendimentos abocanhada pelo governo por meio dos impostos. A tabela de cálculo para o IRPF está congelada desde abril de 2015 e é atualizada por índices inferiores à inflação desde 1996, o que gera defasagem de 148%. Significa que, se estivesse atualizada, nenhum trabalhador que ganhasse, mensalmente, até R$ 4.720, pagaria Imposto de Renda, ao contrário do que ocorre atualmente, quando rendimentos acima de R$ 1.903,98 já são tributados.
Tabela do Simples Nacional
Semelhante às pessoas físicas, as empresas de pequeno e médio porte (PMEs) tributadas pelo Simples Nacional estão desde 2018 sem correção na tabela, o que reduz margens, em razão da inflação no período e exclui parcela significativa desses negócios do modelo que possui teto de rendimento bruto fixado em R$ 4,8 milhões (arrecada-se mais porque os preços sobem, mas o lucro é menor). Hoje, são 19 milhões de PMEs. Juntas somam 30% do PIB, arrecadam cerca de R$ 100 bilhões por ano em tributos e 83% delas não sobreviveriam sem o regime diferenciado, aponta pesquisa do Sebrae.
Lucros e dividendos
A taxação em 15% para distribuições acima de R$ 500 mil mensais teria potencial de acrescentar de R$ 50 bilhões a R$ 60 bilhões, anualmente, em arrecadação e envolveria universo inferior a 60 mil contribuintes. Declarações da atual equipe econômica indicam que a ideia segue viva, mas pode encontrar resistências, tendo em vista que até 1996 havia a cobrança, que foi retirada à época porque o entendimento era de que o sistema tributário nacional já onerava as empresas em outras etapas da constituição de receitas, e voltar a fazê-lo na hora de distribuir lucros ou dividendo seria espécie de bitributação.
Zh