Governo quer liberar e regular plantio de cannabis para uso medicinal no Brasil; veja o que dizem instituições
Cada vez mais, o tabu em torno do uso da cannabis para fins medicinais tem sido enfrentado no Brasil. Com o avanço da discussão nos Estados, a judicialização de questões de saúde e problemas de fiscalização, o governo federal quer liberar e regular o cultivo da planta com esse fim.
Dada a complexidade do tema, que demanda análises de diferentes órgãos, a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas e Gestão de Ativos, vinculada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), pretende levar a pauta adiante com prioridade a partir do mês de agosto. Isso vai ocorrer por a proposta de um grupo de trabalho no Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad) com as instituições interessadas.
O objetivo é pensar no melhor modelo e propor uma regulação que envolva órgãos como o Ministério da Saúde, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o Ministério da Agricultura e Pecuária, entre outros.
Conforme a Anvisa, os produtos de cannabis, contendo como ativos exclusivamente derivados vegetais ou fitofármacos da cannabis sativa, devem possuir em sua composição predominantemente canabidiol (CBD), e não mais do que 0,2% de tetrahidrocanabinol (THC) — o composto com atividades psicoativas.
A agência esclarece que os produtos poderão conter teor de THC acima de 0,2% desde que sejam destinados a “cuidados paliativos exclusivamente para pacientes sem outras alternativas terapêuticas e em situações clínicas irreversíveis ou terminais”. Segundo a resolução, os produtos de cannabis podem ser prescritos quando estiverem esgotadas outras opções terapêuticas disponíveis no mercado brasileiro.
O Conselho Federal de Medicina (CFM) aprova o uso do canabidiol para o tratamento de epilepsias de crianças e adolescentes que não responderam ao tratamento convencional. No entanto, conforme Nadja Schröder, professora titular do Departamento de Fisiologia e coordenadora do Programa de Pós-graduação em Fisiologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), sabe-se que hoje, no Brasil, há o uso chamado off label (fora das indicações recomendadas).
á algumas maneiras de adquirir produtos à base de cannabis: a importação, com uma autorização emitida pela Anvisa; a compra em farmácias (exclusivamente do óleo de canabidiol); por meio de associações de pacientes, que, muitas vezes, têm autorização judicial para o cultivo; e por via judicial. O plantio da cannabis medicinal, por sua vez, é permitido apenas com autorização judicial.
— O que a gente entende que é um vazio regulatório é justamente a não autorização do plantio. Pela falta de regulação, cai na regra da proibição — explica a secretária nacional de Políticas sobre Drogas e Gestão de Ativos, Marta Machado.
A Anvisa autoriza a produção de alguns medicamentos à base de cannabis. Contudo, o cenário acaba gerando uma distorção no preço dos medicamentos, que dependem de importação — mesmo os produtos fabricados no Brasil utilizam insumo importado, já que não há liberação para plantio —, conforme a secretária.
— Tem frascos de óleo de cannabis custando R$ 6 mil. Essa situação de alto custo do medicamento vem gerando um problema de acesso à saúde, que tem sido levada ao Judiciário, quando temos o direito à saúde como um direito constitucionalmente garantido, que não pode esperar — afirma.
Além disso, o vácuo na regulação do plantio também tem gerado um forte movimento de judicialização na busca por autorizações individuais para o cultivo. Segundo Marta, estima-se que há mais de 2 mil autorizações judiciais de plantio para fins medicinais no país.
Falta de controle
Devido à judicialização do tema, o cenário atual caracteriza-se pela falta de informações sobre a localização das plantações e quem as cultiva, o que gera dificuldades de fiscalização. A situação também não permite saber se há desvio de finalidade ou mesmo efetuar um controle de qualidade.
— A gente entende que se vive uma situação de profunda desorganização, com falta de fiscalização e de controle, então, por isso, uma regulação do plantio é muito importante. Quem pode? Em quais circunstâncias? Com controle de qualidade? Quem vai fiscalizar? Vai ter lote, para evitar desvio? Há uma série de elementos que precisam ser olhados com mais atenção. Diante dessa situação, a gente entende que é muito importante dar esse passo para discutir amplamente um modelo prudente e responsável de regulação — destaca Marta, ressaltando que isso inclui um sistema de fiscalização e monitoramento.
Diante dessa situação, que a pasta entende como “ruim”, a discussão será prioridade.
— Tem a importância de garantir o acesso à saúde, de resolver distorções da regulação tal como está, de aumentar a segurança dos pacientes e, do ponto vista de segurança pública, de aumentar a fiscalização, para que não haja desvios do fim medicinal para outros fins de marco ilícito. Tem uma importância de várias ordens — avalia a secretária.
Marta ressalta que, por se tratar de um tema transversal, é necessário trazer diferentes atores para pensar a regulação, como o Ministério da Saúde (MS), a Anvisa, a Polícia Federal, as associações, os pacientes e outros interessados — alguns dos quais já se debruçam sobre o tema da cannabis medicinal, como o MS e a Anvisa.
Recentemente, o Estado de São Paulo aprovou uma lei oferecendo medicamentos à base de cannabis no Sistema Único de Saúde (SUS) estadual.
— No momento em que se oferta no SUS um medicamento a custo altíssimo, também gera um problema de orçamento para o SUS. Isso também nos pressiona a pensarmos em uma solução regulada — acrescenta a secretária.
O que diz o Conselho Federal de Medicina
O CFM vê o plantio no Brasil como mais uma maneira para que as pessoas possam ter acesso ao canabidiol. Conforme o médico e 1º vice-presidente do CFM, Jeancarlo Fernandes Cavalcante, nesse caso, é preciso saber qual variedade de cannabis poderá ser plantada. O ideal seria uma que tivesse baixo teor de THC e alto teor de CBD — no entanto, essa definição não está na esfera de competência do CFM, cabendo à Anvisa e ao governo, ressalta.
— No primeiro momento, a gente não vai opinar sobre isso, porque não é da nossa competência. Mas acreditamos que, se isso for para uso para as indicações corretas, poderá ser medida viável para se obter o canabidiol no Brasil. O Conselho Federal de Medicina acompanha essa iniciativa do governo e, se for chamado a opinar, irá colaborar com todo o prazer — pontua.
Pesquisas e possibilidades
Em relação à ciência, Nadja, que conduz estudos com cannabis, destaca que há pesquisas pré-clínicas, que utilizam modelos experimentais, que indicam que o CBD tem propriedades anti-inflamatórias e neuroprotetoras.
— Isso sugere um uso um pouco mais amplo do que apenas nas convulsões. Mas estudos maiores em humanos ainda precisam ser feitos para que se possa ampliar seu uso — explica a professora.
A farmacêutica destaca ainda que, em outros países, formulações à base de produtos da cannabis são aprovadas, por exemplo, para esclerose múltipla, dor crônica e antiemético (para vômitos e enjôo) em pacientes com câncer e em uso de quimioterapia.
Para a especialista, a autorização nacional poderá permitir um plantio em grande escala, profissionalizado e utilizado por empresas para a produção de medicamentos de forma mais segura.
— Eu creio que essa ação seja positiva, uma vez que hoje não é permitida a produção no país, e, desta forma, ficamos dependentes da importação. A indústria farmacêutica brasileira, de modo geral, é muito dependente das grandes companhias farmacêuticas estrangeiras. Precisamos desenvolver mais a indústria nacional. Isso poderá favorecer a pesquisa nacional também e, ainda, possivelmente baixará os custos para os pacientes — salienta.
Conforme dados da Anvisa, o número de autorizações de importação de produtos de cannabis tem crescido a cada ano. Em 2015, foram 850 autorizações. De 2021 para 2022, houve um crescimento de mais de 100% nas importações, de 40.165 para 80.390. Somente neste ano, até maio, já foram 52.592 — um número que já representa 65,4% do total do último ano.
Nadja avalia que o maior problema é o público que pensa que a autorização do plantio para fins medicinais é sinônimo de legalizar o uso da maconha recreacional — e frisa que são “coisas completamente diferentes”.
“Quem não tem dinheiro não tem acesso”
Presidente da Associação Cannábica Medicinal do Rio Grande do Sul (Ascamed) — a primeira do Estado —, Matheus Hampel reforça o alto custo do medicamento no Brasil, com valores que variam conforme a concentração. De acordo com Hampel, a importação é cara e está disponível para uma pequena fatia da população, por valores acima de R$ 3 mil por mês. Via associação, também costuma ter um alto valor para os associados. Ele considera ainda o autocultivo “elitizado”, sendo difícil a comprovação da expertise necessária para produzir o remédio em casa. Além disso, a estrutura necessária para o plantio é cara — o que, novamente, beneficia apenas uma parcela da população.
— Hoje, basicamente, se não tem dinheiro, tem de recorrer às associações. Não tinha nenhuma no Rio Grande do Sul quando comecei a procurar, e muitas delas trabalham em valores impagáveis para grande parte da população. Eu me incluo, ganhava em torno de R$ 1,5 mil, e, na associação, o medicamento ia custar quase R$ 1 mil por mês. Em resumo, quem não tem dinheiro não tem acesso, às três formas (de obtenção) — afirma o presidente, que fundou a associação com o objetivo de facilitar o acesso à quem precisa.
Na experiência de Hampel, após ser negada a possibilidade de receber o medicamento por via judicial, foi necessário entrar com um pedido de habeas corpus por conta própria — o que pode custar alguns milhares de reais.
— De novo, selecionamos uma fatia. Hoje a cannabis é para quem tem dinheiro. Eu não acho justo que o critério seja financeiro em um país com desigualdade social, saúde não pode ter critério financeiro. A Constituição Federal diz que saúde é um direito de todos e dever do Estado, mas ele vira as costas. É medicamento, é reconhecido, se não fosse não daria para importar. Então por que é medicamento para quem tem dinheiro e droga para quem não tem? — questiona.
O presidente da Ascamed vê a iniciativa de regulação do plantio como “o mínimo”, que já deveria ter acontecido. Ele reconhece que é preciso comemorar cada vitória, mas relembra que se trata de uma questão de saúde, pela qual diversas pessoas sofrem todos os dias sem outra saída. Desta maneira, avalia a importância da medida como uma alternativa para quem não tem acesso a nenhuma das opções.
— Espero que ande, para as pessoas pararem de sofrer com isso, e que não sejam mais criminalizadas pela substância. E que isso consiga passar por cima do preconceito e da desinformação, maior barreira que se enfrenta, inclusive política — destaca.
Hampel avalia que o acesso permanecerá difícil e que a medida continuará fechando os olhos para milhões de brasileiros enquanto o medicamento não for incorporado ao SUS. Somente assim, em sua visão, alcançará a população — sem esquecer de ninguém.
ZH
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