O Ministério Público Estadual (MP) avalia que é possível realizar até o final do ano um novo julgamento dos quatro réus envolvidos no caso da Boate Kiss — cujas penas foram anuladas nesta terça-feira (5) pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). A 1ª Vara do Júri da Capital chegou a formalizar a data de 20 de novembro para voltar a analisar as responsabilidades sobre a tragédia que deixou 242 mortos uma década atrás, mas no final da tarde voltou atrás em razão da necessidade de organizar a infraestrutura para um evento de grande porte.
Segundo nota da assessoria de comunicação do Tribunal de Justiça (TJ), a “data inicialmente marcada para realização de novo julgamento, de 20/11/23, será remarcada”. O juiz responsável, Francisco Luis Morsch, afirmou em seu novo despacho que “haverá a definição da data o mais breve possível”.
Presente à sessão da sexta turma do tribunal que negou um recurso do MP e manteve a anulação do júri realizado no final de 2021, o procurador-geral de Justiça gaúcho, Alexandre Saltz, informou que a instituição cogita desistir de um recurso especial que já havia sido apresentado ao Supremo Tribunal Federal (STF), que tem como objetivo recuperar a validade das condenações já impostas, com o objetivo de submeter mais rapidamente os réus a um novo conselho de sentença.
— Nós temos duas opções. Temos um recurso extraordinário, que já foi interposto, e vamos avaliar se insistimos nesse recurso ou, então, desistir para que o júri aconteça logo. Temos absoluta convicção de que a sociedade gaúcha deve decidir finalmente a questão que envolve o Caso Kiss para que os familiares possam virar essa triste história das suas vidas e do povo gaúcho — afirmou Saltz ao final da sessão em Brasília.
Apesar da perspectiva de um novo júri nos próximos meses, o presidente da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), Gabriel Barros, se mostrou revoltado com a decisão emitida pelo STJ por conta de irregularidades processuais.
— Os culpados são recompensados com a liberdade e a possibilidade de passar com as famílias os dias. Hoje é meu aniversário, estou aqui perdendo mais vida com isso. Estamos profundamente abalados e em busca de uma resposta — declarou Barros, que viajou até Brasília para acompanhar a sessão no plenário.
O presidente da associação disse ainda que os familiares não estão em busca de justiça apenas para si próprios:
— Não é uma resposta para nós, vítimas diretas e indiretas, é uma resposta para o futuro. O que a gente busca não é simplesmente entender o que houve no passado. A gente sabe e está em busca de legitimar aquilo que aconteceu para que a história possa ser contada, as pessoas aprendam com ela e se criem mecanismos para que não se repita.
Pelo lado da defesa, o escritório Cipriani, Seligman de Menezes e Puerari Advogados (que representa Mauro Hoffmann) divulgou nota dizendo ter recebido “com satisfação a acertada decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que validou a decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) e reconheceu as graves nulidades ocorridas ao longo do júri do Caso Kiss, ocorrido em dezembro de 2021”. O texto informa ainda que “esse é o resultado que representa o justo e o necessário para que um novo júri ocorra, com paridade de armas, dentro do que preconiza o devido processo legal”.
A nulidade considerada mais grave pelos ministros do STJ, que formaram um placar de 4 a 1 pela ilegalidade do processo que levou à condenação dos réus, foi o fato de o juiz responsável pelo caso ter se reunido com os jurados sem a presença de representantes das defesas. Admitir esse tipo de procedimento abriria um precedente perigoso, segundo entendeu a maioria dos magistrados, de que algo impróprio dito eventualmente por um magistrado, sem conhecimento dos advogados, pudesse influenciar irregularmente os conselhos de sentença.
Condenação havia ocorrido em dezembro de 2021
Os quatro réus haviam sido condenados em um júri realizado em dezembro de 2021, em Porto Alegre. Por decisão dos jurados, Elissandro Spohr, Mauro Hoffmann (sócios da Kiss), Luciano Bonilha Leão e Marcelo de Jesus dos Santos (ligados à banda que se apresentava quando ocorreu a tragédia) receberam penas que variaram entre 18 e 22 anos de prisão, em regime fechado, por homicídio com dolo eventual de 242 pessoas na madrugada de 27 de janeiro de 2013. Naquela data, em razão do uso de um artefato pirotécnico durante o show da banda, teve início o incêndio que gerou fumaça tóxica e resultou na mortandade.
As defesas recorreram ao Tribunal de Justiça sob justificativa de irregularidades no processo. Os desembargadores anularam o júri em agosto do ano passado ao concordar com parte das alegações, como o fato de ter havido três sorteios de jurados, em vez de apenas um (como é o usual), e uma reunião reservada do juiz que presidiu o julgamento, Orlando Faccini Neto, com os jurados sem a presença de advogados de defesa. Em razão disso, enquanto os réus passaram a esperar por uma nova data em liberdade, o Ministério Público recorreu contra a anulação.
A sexta turma do STJ começou a julgar esse recurso em junho, quando o relator, ministro Rogerio Schietti Cruz, votou em favor do MP e do restabelecimento da decisão do júri. Em seguida, porém, o julgamento foi suspenso devido a pedidos de vista dos ministros Sebastião Reis Júnior e Antonio Saldanha Palheiro. Ao ser retomada a sessão, nesta terça, todos os quatro ministros restantes da turma divergiram total ou parcialmente do relator e decidiram manter a anulação de um dos mais rumorosos júris da história gaúcha.
ZH
Foto: Matheus Schuch / Agência RBS