Produção de decisões e análises de processos: como a inteligência artificial é utilizada na Justiça do RS
As decisões judiciais já estão sendo tomadas com o auxílio de inteligência artificial (IA) no Brasil. Com a promessa de aumentar a produtividade do Judiciário e minimizar erros humanos, as IAs se tornaram realidade em dezenas de tribunais que adotam a tecnologia em diferentes etapas dos processos — desde a distribuição das ações, passando pelo exame de provas e argumentações, até a redação das sentenças.
No Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), em um mês de operação, a IA nomeada Gaia Minuta produziu mais de 95 mil minutas, rascunhos de decisões — das quais milhares já foram publicadas e se tornaram despachos em processos. O dado foi obtido com exclusividade por Zero Hora junto à Corte.
As sentenças e os votos produzidos a partir das IAs do Judiciário não podem ser publicados sem revisão humana. A lógica esperada do juiz ou do desembargador é de que o magistrado primeiro use a IA para compreender bem o caso, depois forme internamente a sua convicção e, somente então, peça para a IA redigir a decisão.
Na plataforma do TJRS, para gerar uma decisão com IA, o magistrado primeiro insere um comando de texto, o prompt, dizendo se quer, por exemplo, condenar ou inocentar um acusado por determinado crime. Ou se decidiu prover ou rejeitar determinado recurso. No comando, o juiz pode apontar os elementos que a IA deve considerar para redigir a sentença.
Em alguns segundos — em geral, em menos de um minuto —, o rascunho da decisão judicial aparece na tela. A partir daí, se abre um segundo momento, considerado fundamental pelo TJRS para preservar o papel do ser humano no processo de julgar: a revisão.
Se concordar com o texto feito pela IA, o magistrado clica e transforma a minuta em uma decisão judicial com todos os seus efeitos. Senão, o juiz pode pedir à IA novas versões ou fazer manualmente alterações no documento.
— Nós não poderíamos perder a essência de julgar. O juiz não pode abrir mão disso. A gente não pode pensar em abrir mão da jurisdição, senão o Estado perde. Quando o juiz delega a sua atividade, ele não está sendo juiz. A IA vai produzir uma decisão no mesmo contexto que um assessor meu produziria — defende o desembargador Antonio Vinicius Amaro da Silveira, presidente do Conselho de Inovação e Tecnologia do TJRS.
IA generativa
O Gaia Minuta opera sob dois motores de IA mundialmente conhecidos: o Claude, desenvolvido pela Anthropic e oferecido pela Amazon, e o Gemini, do Google. Semelhantes ao famoso ChatGPT, são IAs do tipo “generativa” e, portanto, capazes de criar conteúdos novos em vez de apenas apenas automatizar procedimentos.
Ao criar, as IAs generativas frequentemente “alucinam”, termo usado quando essas tecnologias inventam informações inverídicas ou inexistentes. Para reduzir a chance de “alucinação”, as IAs do TJRS operam sob parâmetros restritos definidos pela Corte, como a busca exclusiva de informações no banco de dados do Judiciário. Em outras palavras, a IA do TJRS não pode pesquisar livremente na internet.
— A IA vai te ajudar a construir a redação da decisão, mas ela não vai decidir por ti. Eu uso a IA, primeiro, para produzir um resumo do processo. Então, eu me decido e só depois faço a decisão com o Gaia Minuta. E depois eu vou lá revisar a minuta, porque as LLMs (grandes modelos de linguagem das IAs generativas) podem “alucinar”, a gente sabe disso — destaca o desembargador Clóvis Moacyr Mattana Ramos, da 15ª Câmara Cível do TJRS, um dos precursores no uso de IA na Corte.
Uma resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) definiu as regras do uso da IA no Judiciário. Apesar da permissão, os magistrados seguem integralmente responsáveis pelas decisões.
IA sugere decisão com base no histórico do juiz
Para limitar a postura “criadora” das IAs generativas, a aplicação no TJRS é programada para resolver os impasses do presente com base nas decisões já tomadas por cada magistrado em casos anteriores semelhantes. O objetivo é garantir a coerência jurídica e textual de cada julgador.
Os juízes, contudo, também se deparam com casos novos, nunca antes enfrentados por eles ou pelo tribunal onde atuam. Além disso, ao longo da carreira, os magistrados podem mudar de entendimento sobre temas já julgados, seja por transformações próprias ou da sociedade. Nessas situações, em que o histórico não de julgamentos não dá conta do caso atual, a melhor colaboração da IA é para a análise do processo.
— A análise em situações novas não pode ser feita com uma minuta de uma IA generativa, mas ela será de enorme valia na análise dos dados. Um dos grandes méritos da IA, principalmente em processos complexos, é a capacidade de absorção de grande quantidade de dados — pondera o desembargador Ricardo Hermann, coordenador do Comitê de Governança de Segurança da Informação do TJRS.
Juíza diz que se sente mais segura de usar a IA nos casos de absolvição
Desde que foi lançada, em 12 de junho, a IA do Judiciário gaúcho tem sido liberada gradualmente aos magistrados e aos servidores. Para acessar a ferramenta, antes eles precisam passar por um treinamento.
Tateando a Gaia há duas semanas, a juíza Taise Velasquez Lopes, da 4ª Vara Criminal de Caxias do Sul, diz que a ferramenta é muito precisa e que não registrou episódios de “alucinação” até então, mantendo o poder de decisão com o ser humano.
— Ela não faz nada sozinha, ela não decide nada sozinha. Não é a IA que te diz a solução, é tu que diz para a IA o que que quer naquele processo. Por exemplo: “Redija uma minuta de sentença, em um acidente de trânsito, julgando procedente, considerando o depoimento de fulano, sicrano etc” — conta a magistrada.
A juíza criminal diz que, nos primeiros dias, testou a IA pedindo que ela produzisse sentenças para casos em que os humanos já haviam realizado antes o trabalho, buscando comparar os resultados. A avaliação foi de alta qualidade, não apenas para produção das minutas, mas com ganho de tempo, especialmente na análise do processo.
Apesar da perspectiva positiva, a juíza criminal tem avançado com cuidado. Nestas primeiras semanas, ela conta que se sente mais confortável de usar a IA quando está decidida a inocentar do que nos casos em que formou convicção de condenação.
— Para casos mais simples, principalmente de absolvição, eu tenho usado, que é uma situação mais tranquila. (…) A fundamentação, ela tem que ser bastante densa para condenar, porque é a vida de uma pessoa — pontua.
Processos julgados no mesmo dia
De todos os dados ligados à rotina e produtividade, o que mais preocupa o TJRS é a curva crescente de novos processos não superados pela Corte. A Conexão Gaia, conjunto de ferramentas de IA do TJRS, é a aposta da atual administração para tentar virar o jogo e reduzir a fila.
Consideradas as peculiaridades de cada área e de cada caso, a meta da Justiça gaúcha é ter, com a IA, a produtividade de gabinetes como o do desembargador Clóvis Moacyr Mattana Ramos. Por lá, a maior parte dos processos é julgada em até um dia, respeitados os prazos processuais.
— Eu acredito, e este é o objetivo do trabalho, que a prestação jurisdicional vá chegar perto da imediatidade. Tem um gabinete que já está fazendo isso, decidindo o processo que entra no dia — comenta Amaro da Silveira, desembargador responsável pelo Conselho de Inovação.
ZH


