Para enfrentar escassez de mão de obra, iniciativa privada e poder público buscam ampliar educação profissional no RS
Leonardo Stürmer, 30, frequenta aulas técnicas de desenvolvimento de sistemas em Porto Alegre para dar uma guinada na carreira em busca de melhores oportunidades. Isadora Polly, 18 anos, cursa o Ensino Médio em Novo Hamburgo, no Vale do Sinos, ao mesmo tempo em que aprende eletrônica e já faz planos de seguir trabalhando na área. Apesar das diferenças de idade, interesse e formação, ambos têm em comum a aposta em uma modalidade educacional considerada vital para garantir o desenvolvimento do Estado e do país: a Educação Profissional e Tecnológica (EPT).
A EPT tem potencial para facilitar o ingresso no mercado de trabalho, elevar a renda média dos profissionais e impulsionar o Produto Interno Bruto (PIB), além de ser uma ferramenta fundamental para amenizar uma escassez de mão de obra que já afeta 85% das indústrias gaúchas. Os benefícios, porém, acabaram represados pela pouca abrangência alcançada pelo ensino técnico. Para superar as barreiras históricas que limitam a oferta de vagas, o governo estadual, o federal e a iniciativa privada se mobilizam em novas frentes para ampliar a rede dedicada a formar profissionais. A intenção do Ministério da Educação é triplicar em uma década a proporção de matrículas no Ensino Médio vinculadas à educação profissional em todo o país e alcançar metade dos estudantes desse nível até 2035.
Apesar da reconhecida importância do aprendizado laboral, a oferta dessa modalidade ainda é insuficiente para dar conta das demandas do mercado de trabalho. Uma sondagem realizada em julho pela Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul (Fiergs) revela que a falta de trabalhadores qualificados afeta 85,5% das empresas associadas — maior percentual já registrado, superando os 75% observados em 2013.
— Vivemos hoje, no Rio Grande do Sul e no país, uma grande escassez de mão de obra na indústria. Não se priorizou a educação de nível Médio profissionalizante. Além disso, a questão demográfica faz com que tenhamos cada vez mais idosos e menos jovens, e a migração, agravada depois da enchente, fez o Estado perder quase um milhão de pessoas em 10 anos — analisa a diretora-geral do Sesi-RS, do Senai-RS e do Instituto Euvaldo Lodi-RS (IEL-RS), Susana Kakuta.
Ensino como indutor de crescimento
Uma pesquisa divulgada pelo Itaú Educação e Trabalho aponta que, se triplicassem as atuais 2,5 milhões de matrículas país, o PIB brasileiro cresceria 2,3% em razão do avanço na produtividade, de uma melhor inserção no mercado de trabalho e do estímulo à inovação. As vantagens incluem ainda benefícios individuais: quem conta com um diploma técnico recebe, em média, salários 32% maiores em comparação a um egresso do Ensino Médio tradicional.
Os dados também desmentem uma antiga crença de que o investimento nesse tipo de formação se destinaria a formar mão de obra barata para o mercado, desviando o estudante de um possível caminho rumo ao Ensino Superior e a uma preparação mais sofisticada. Conforme o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), os números do Censo Escolar de 2024 apontam justamente o oposto. Apenas 26% de quem conclui o Ensino Médio convencional ingressa até o ano seguinte na Educação Superior, enquanto essa proporção salta para 44% entre aqueles que combinam as disciplinas tradicionais com a modalidade técnica.
Existem três modelos principais de ensino profissional
- Integrado: considerado ideal para sustentar a expansão da EPT. O aluno aprende as disciplinas tradicionais do Ensino Médio ao mesmo tempo em que aprende um ofício, e na mesma instituição.
- Concomitante: estudante cursa o Ensino Médio em um estabelecimento e a parte técnica em outro.
- Subsequente: a prática laboral sucede a formação na Educação Básica.
Nova política para o setor
Depois de décadas de descaso governamental com o ensino técnico, há um novo conjunto de medidas em diferentes níveis de governo com o objetivo de destravar o potencial da formação de profissionais especializados.
— Estamos em um momento especial, em que a EPT finalmente entrou na pauta. Sempre houve uma dicotomia entre fazer educação técnica ou ir para a universidade como caminhos distintos, e a educação profissional era tratada como algo de segunda ordem, feita para as camadas menos favorecidas da sociedade. De uns anos para cá, essa mentalidade vem mudando diante de incentivos a essa modalidade — analisa a gerente de Implementação do Itaú Educação e Trabalho, Rita Carmona.
Em fase final de discussão, a proposta que deve ser formalizada no novo Plano Nacional de Educação (PNE) é de elevar a 50% a proporção de estudantes no Ensino Médio inscritos em programas vocacionais em 10 anos. Hoje, essa cifra fica em 17% no Brasil — muito abaixo do observado em outros locais. A média nos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), por exemplo, é de 44%. O desafio é significativo. O Brasil não conseguiu cumprir a meta anterior, que previa triplicar o número absoluto de matrículas em todas as modalidades de ensino técnico de nível médio no período entre 2014 e 2024. O painel de monitoramento do Inep indica que o Brasil ficou distante do objetivo: atingiu 2,3 milhões de alunos, muito aquém dos 4,8 milhões necessários, por conta de barreiras como falta de recursos, infraestrutura e professores habilitados.
O secretário de Educação Profissional e Tecnológica do MEC, Marcelo Bregagnoli, garante que hoje o cenário é diferente. Em agosto, um decreto instituiu a Política Nacional de Educação Profissional e Tecnológica (PNEPT), que prevê aumento de vagas, formação de educadores e a criação de um sistema de avaliação específico.
Também está prometida a implantação de uma centena de institutos federais, com 140 mil vagas, e o estímulo para os Estados aplicarem recursos por meio de um programa que permite substituir parte do pagamento dos juros da dívida com a União por investimentos na educação profissional. A intenção é criar 3 milhões de vagas em todo o país dessa forma — o governo do Rio Grande do Sul ainda analisa a adesão a essa iniciativa.
— O (programa) Juros por Educação representa um marco inovador: pela primeira vez, a União permite que os Estados utilizem o valor equivalente aos juros das dívidas refinanciadas para investimentos diretos no próprio território, sendo 60% obrigatoriamente destinados à educação profissional técnica de nível médio. Essa medida tem potencial para enfrentar desafios históricos, como a falta de professores e a insuficiência de infraestrutura pública, especialmente nas redes estaduais. Os recursos poderão ser aplicados na contratação e formação de docentes, melhoria e ampliação de espaços físicos, modernização de laboratórios e equipamentos, e atualização tecnológica — explica Bregagnoli.
RS prevê expansão na rede pública para equilibrar com oferta privada
O Rio Grande do Sul vive um cenário diferente do resto do Brasil em relação à educação profissional. O peso da iniciativa privada na formação de novos profissionais é muito maior do que na média nacional, o que faz da expansão da EPT na rede pública o principal gargalo a ser superado. Quando se analisa a proporção de matrículas no Ensino Médio associadas ao ensino técnico somente em estabelecimentos públicos, os gaúchos ficam ligeiramente abaixo da média brasileira — 15,4% dos alunos em todo o país aprendem um ofício além das disciplinas tradicionais, contra 14,2% em solo gaúcho. Quando se inclui a oferta de vagas em instituições privadas como os serviços nacionais de aprendizagem Industrial (Senai) e Comercial (Senac), a proporção salta para 31,5% no Estado, enquanto varia para somente 17% no cenário nacional.
— Nosso número de matrículas cresce a cada ano. Trabalhamos com projetos gratuitos e, em parte, comercializados. Temos também feito ações em todo o Estado, dependendo das demandas (de profissionalização) de cada região, em parceria com as prefeituras — afirma o gerente do Núcleo de Negócios do Sistema Fecomércio-RS/Sesc/Senac, Leonardo de Paula.
A mesma força se revela na modalidade subsequente (posterior à formatura na Educação Básica). O morador da Capital Leonardo Stürmer é um dos 86,9 mil alunos de ensino técnico vinculados à iniciativa privada no Estado. Já graduado em jornalismo, buscou o Senac Tech (unidade voltada à área tecnológica), em Porto Alegre, com o objetivo de ampliar seu horizonte profissional por meio de um curso ligado à tecnologia. Escolheu desenvolvimento de sistemas.
— Busquei informações com pessoas que fizeram curso técnico, e que me recomendaram bastante. Já estou desenvolvendo o projeto de um software que ajuda na organização de vendedores autônomos — Afirma Stürmer.
Um dos desafios da EPT no Rio Grande do Sul é expandir a oferta na rede pública. A Secretaria Estadual da Educação (Seduc) pretende dar um passo importante a partir de 2026, quando todas as 438 escolas de turno integral existentes hoje passarão a ter um curso técnico associado.
Hoje, uma das referências do ensino técnico no Estado é a Fundação Escola Técnica Liberato Salzano, em Novo Hamburgo, que atende a 2,8 mil alunos no nível médio e em cursos subsequentes. O diretor-executivo da escola, José de Souza, afirma que houve um número recorde de inscritos para este ano, chegando a quase 1,8 mil candidatos para 400 vagas no período diurno. Uma das razões para isso é a proximidade com as empresas da região, que costumam buscar profissionais entre os egressos do estabelecimento.
Uma das estudantes que optou pela EPT integrada ao Ensino Médio no Liberato é Isadora Polly, 18 anos, moradora de Estância Velha.
— Fui influenciada pelo meu irmão, que já estudava na Liberato, e pelas oportunidades que tu tens ao sair daqui. Para se formar, tu já passas por um estágio obrigatório. Muitas empresas buscam estudantes daqui porque temos uma base muito diferenciada — conta Isadora.
Conforme Tomás Marques de Hollanda Collier, superintendente de Educação Profissional da Seduc, a partir do ano que vem, todas as primeiras séries do Ensino Médio em tempo integral terão o ensino técnico atrelado.
— Na primeira série, será feita uma formação um pouco mais voltada para competências gerais no mundo do trabalho, para o estudante desenvolver o lado socioemocional — afirma Tomás.
Serão oferecidos 14 cursos nessas escolas que, somados aos já existentes, disponíveis em 233 estabelecimentos, vão totalizar 54 diferentes opções na rede pública. Essa iniciativa deverá oferecer 11 mil novas vagas de EPT no Estado, que representam cerca de um terço a mais em relação às 35 mil que havia em 2024 em todas as modalidades do sistema estadual. Como resultado da expansão prevista, a proporção de municípios contemplados com EPT em escolas estaduais deverá saltar de 28% para 58%
ZH


